Eu me lembro da primeira vez que eu disse em voz alta, quase sem querer: “sou umbandista”.
Eu tinha acabado de cair de paraquedas no mundo das entidades, orixás, guias, pembas, incensos, flores, copos d’água e roupas brancas. Tinha sido convidada pela primeira vez para ir a um terreiro, “por acaso”, uns seis meses atrás. Estava apaixonada, lendo e estudando tudo o que me aparecia pela frente e fascinada com a semelhança entre a umbanda e o kardecismo, a religião que aprendi desde o berço.
Eu já lera tudo aquilo em algum lugar, mas nunca tinha percebido com tanta clareza: todas as religiões, no fim, diziam a mesma coisa. Só o que mudava eram as palavras usadas.
Na época eu estava dando aula para uma turma de nono ano da rede municipal do Rio de Janeiro. Meus alunos tinham entre catorze e dezesseis anos e eu os ajudava com produções textuais e interpretações de texto. Um dia, no meio de um exercício sobre uso de vírgulas (habilidade muito importante, aliás), despontou entre dois deles o assunto da religião. A maioria da turma partilhava da mesma fé, por isso a mencionavam com frequência. Chamei-os de volta ao foco da aula e alguém jogou a pergunta no meu colo, assim, sem preparo nenhum:
-Professora, a senhora é católica ou evangélica?
Eu já tinha respondido aquela pergunta na vida, mas na época a resposta era mais aceita socialmente. Curiosamente, quando eu dizia apenas “espírita” ninguém se impressionava muito. Se não entendessem, era só falar que era “aquilo do Chico Xavier”. De alguma forma, parece que a ausência de tambores e orixás diminui bastante o pânico que as pessoas têm da ideia de se comunicar com alguém que morreu. Eu me pergunto o porquê…
Fiquei com cara de paisagem por um segundo. Não sabia se podia (ou deveria) falar sobre isso em sala de aula, mas automaticamente respondi:
-Nenhum dos dois…
Eles pareceram espantados. Alguém lá no fundo perguntou se eu era atéia. Fiquei um pouco triste. Aos quinze anos, eles pensavam que só havia duas religiões no mundo, ou ao menos no Brasil… Não perguntaram “qual é a sua religião?” e sim “é essa OU aquela?” “Ou”. Duas únicas opções.
Respirei fundo, imaginando pais revoltados batendo na porta da direção da escola, e abri a boca para falar pela primeira vez na vida a frase que, imagino, repetirei pelo resto da vida:
-Eu sou umbandista.
Silêncio total por uns cinco segundos. Um aluno que eu adorava, de origem muito humilde e que sonhava em fazer medicina, arregalou os olhos e ficou muito quieto. Uma colega riu da reação dele e perguntou o que ele tinha. “Fico sem graça de explicar assim na frente da professora…”, foi a resposta dele, dita bem baixinha, esperando que eu não fosse ouvir. Mas ouvi… Imagino que o que ele tinha ouvido falar da umbanda até então não tenha sido muito positivo.
Dois ou três fizeram “ahhhh…!” e uns quatro ou cinco perguntaram o que era “umbandista”. Respondi a pergunta com todo o cuidado:
-É uma religião que nasceu aqui no Brasil, mais ou menos cem anos atrás. Ela mistura umas coisas da Igreja Católica e do espiritismo com conhecimentos dos índios e também das religiões dos povos africanos, que tinham sido trazidos pra cá como escravos.
Todos aqueles pares de olhos me encararam meio decepcionados, tipo “só isso?”. Acho que esperavam algo bem mais mirabolante. Uma aluna começou a perguntar se umbandistas podiam “se disfarçar de pessoas normais” e a turma caiu na risada. Respondi que umbandistas SÃO pessoas normais, e que exatamente por isso eu estava ali dando aula de redação para eles. Fico imaginando até hoje se ela pensava que ser professora era a minha identidade secreta, tipo o Super Homem e o Clark Kent, e que nas horas vagas eu andava rodando pelo meio da rua vestida com a roupa de santo. (Bom, pensando bem…)
Tratei de sair daquele assunto antes que surgisse uma polêmica ou tentativa de evangelização, mas antes uma menina sentada lá no fundão da sala, ao ouvir minha explicação, levantou os olhos do celular – o foco de sua atenção nos últimos quarenta e cinco minutos – e deu de ombros:
-Ah, então umbanda é normal, ué…
É isso aí, aluna. Normal, ué.